Uma conversa com o enólogo Luís Sottomayor, responsável pelo Barca Velha

É realmente um privilégio conversar com alguém tão apaixonado pela sua arte. Luís Sottomayor é um dos principais enólogos da Sogrape e o responsável por um dos mais emblemáticos vinhos portugueses: o histórico Barca Velha, um vinho do Douro que é venerado mundialmente. Sentamos com o Luís quando ele esteve de passagem por Luanda em julho de 2024 para apresentar o Barca Velha 2015, e procuramos entender um pouco mais sobre a história deste senhor que se confunde com a história recente da própria Sogrape. Pelo caminho, aprendemos muito mais sobre o processo de criação deste vinho único.

O Douro é a região mais bonita do mundo. E a Leda é o paraíso dentro da região do Douro.

LNL: Está na Sogrape desde 1989 – já lá vão 35 anos. Como vê a transformação da Sogrape e o seu papel nesta transformação?

Luís Sottomayor (LS): Quando eu entrei na empresa Sogrape, entrei directamente para o vinho do porto, pra Ferreira; a Sogrape tinha acabado de comprar, há dois anos, a Ferreira e tinha aí começado, digamos assim, a diversificação do portfolio da Sogrape. Porque até então, a Sogrape estava muito dependente de uma marca, que era o Mateus Rosé, que ainda significa muito para a Sogrape. Em ‘87 a Sogrape adquire a Ferreira e quando eu entro em ‘89 foi precisamente para começar a trabalhar na Ferreira e foi onde sempre estive de lá até agora, mas nestes últimos 35 anos a Sogrape, enfim…explodiu! Explodiu não só em Portugal, porque depois de comprar a Ferreira ainda comprou mais 3 companhias, entre elas a Offley e comprou a Sandman, ambas na região do Douro…foram depois absorvidas pela Ferreira.

A Sogrape foi diversificando e aumentando a sua área de influência para fora do país. Começou por comprar na Argentina, depois no Chile, Nova Zelândia, e Espanha, sendo que neste momento é em Espanha onde tem feito os últimos investimentos. Em 2012 comprou as adegas LAN e este ano acrescentou ao portfólio a Viña Mayor, em Ribera del Duero. Neste momento a Sogrape em Espanha está presente em Rioja, Ribera del Duero, Rueda, onde comprou também uma empresa, a Aura, e nas Rias Baixas com Santiago Ruíz. Hoje em dia a Sogrape é uma empresa internacional, está presente em todo o mundo, mas o seu foco continua a ser Portugal e a Peninsula Ibérica. E nunca deixando de investir na região do Douro. Quando eu entrei pra Sogrape, a empresa tinha na altura cerca de 100 héctares de vinha; hoje em dia temos 600 héctares de vinha só na região do Douro.

LNL: A região do Douro, em especial a Quinta da Leda, é o palco da sua arte. O que o liga àquele terroir? O que o torna especial?

LS: É assim, eu quando entrei em ‘89, logo o meu primeiro trabalho, a minha responsabilidade foi fazer a vinificação da nossa adega. A Sogrape tem 4 adegas na região toda: Seixo, Leda, Sairrão e Vila Real. Quando eu entrei em ‘89 tinha duas, que eram no Seixo e na Leda. E o meu trabalho foi sempre estar na Leda, até 2007. Em 2007 foi o ano em que fiquei responsável por toda a região, como Director de Enologia da região para o Douro. E por isso tive que deixar de estar na Leda. Tive de começar a supervisionar todas as outras [adegas], que entretanto foram aparecendo; no início eram duas e hoje em dia são quatro. Tenho de me dividir por todas elas.

Mas é evidente que foram muitos anos no Douro Superior e muitos anos na Quinta da Leda; participei no projecto de construção da adega, no projecto da evolução, do crescimento da Quinta da Leda…por isso estou muito ligado àquela zona, para além de ser um paraíso. O Douro é a região mais bonita do mundo. E a Leda é o paraíso dentro da região do Douro. É qualquer coisa de sublime. Sempre que posso, vou para lá. Até hoje.

Angola é um mercado muito importante e muito interessante para nós. Não é à toa que foi um dos mercados onde nós viemos apresentar a Barca Velha.

LNL: Como olha para o mercado angolano, e qual a sua importância para a Sogrape, especificamente a Casa Ferreirinha?

LS: Eu para lhe dar uma ideia da importância que o mercado angolano tem, e não é só para a Casa Ferreirinha mas sim para o grupo inteiro, Angola é um dos países onde a Sogrape decidiu criar uma empresa de distribuidora, neste caso a Vinus, que começou em 2005; enfim, Angola é um mercado muito importante e muito interessante para nós. Não é à toa que foi um dos mercados onde nós viemos apresentar a Barca Velha. Juntamente com Brasil, Inglaterra e brevemente os Estados Unidos…mas Angola foi um dos mercados onde decidimos vir apresentar a Barca Velha.

LNL: Qual foi o impacto do COVID e da crise econômica em Angola no seu negócio local?

LS: É evidente que sofremos este impacto. Mas nunca desistimos de Angola. São ciclos. Em Portugal também se sente isso, em todo o lado se sente isso; Angola teve os seus problemas, mas não desistimos e cá continuamos desde 2005. Cá estamos e será pra ficar.

LNL: Quais os maiores desafios para a expansão da Sogrape a nível do continente? Olha para além de Angola?

LS: Sim, temos contactos, temos agentes em todos os mercados africanos, mas Angola é sem dúvida o nosso grande foco no continente africano.

LNL: O que faz da Barca Velha um vinho tão icônico, ao seu ver?

LS: Olha, é a raridade. O Barca Velha nasceu em 1952; de lá pra cá, declaramos 21 colheitas. 21 de Barca Velha e 18 de Reserva Especial. O Barca Velha e a Reserva Especial são dois irmãos, dois irmãos gêmeos; a diferença entre um e outro é que o gêmeo Barca Velha é um bocado. ligeiramente, mais forte que outro, corre um bocadinho mais. São muito parecidos. Em 70 anos de existência, temos cerca de 35 colheitas, o que significa que de dois em dois anos há uma colheita. Isso mostra um bocadinho a raridade, a exigência que nós pomos para fazer este produto, este vinho. E por isso daí vem o reconhecimento que o vinho tem: só aparece em anos que realmente é muito bom, e quando aparece, modéstia à parte, é um vinho que faz a diferença. E sobretudo, é a sua capacidade de envelhecer que o faz ser diferente.

LNL: O que procura num bom vinho, e quais os estilos de vinho que mais aprecia?

LS: Eu gosto de todo tipo de vinho, neste aspecto não sou esquisito. Mas cada vez mais…brancos…era um vinho, enfim, sempre tive interesse e sempre produzi bons brancos, mas é um vinho que cada vez mais consumo com mais assiduidade. Portugal não era um país com reconhecimento na produção de vinhos brancos, mas hoje em dia produz vinhos brancos de excelente qualidade. Por isso, gostando de todos os vinhos, o único em qual tenho mudado um bocado a minha opinião será ou bebido com mais assiduidade será o branco, porque temos realmente vindo a produzir vinhos de grande qualidade. Gosto de beber todos tipos de vinho, gosto e quero. Quero experimentar porque não podemos ficar parados, temos de ver o que os outros países e outras regiões andam a fazer. Temos de nos manter actualizados.

LNL: Fale-nos um pouco sobre este Barca Velha 2015. Tem dito que esta safra de 2015 tem características de duas safras anteriores: a de 2008 e 2011. Pode expandir?

LS: É muito simples. Tem a ver com as características climáticas do ano. 2015 foi um ano muito desafiante. Foi um inverso seco e relativamente frio, com uma primavera quente e seca. Estas são as condições para que a maturação comece cedo. Foi isso o que se sucedeu em 2015 – uma maturação precoce, um desenvolvimento vegetativo precoce – e quando chegou o início de julho, já tínhamos o pintor feito. Para quem não sabe o que é o pintor: a uva, branca ou tinta, nasce verde; o pintor é quando a uva tinta fica vermelha, e quando a uva branca fica dourada. É o momento do pintor e significa que a maturação está muito perto da final. Está a acabar o ciclo vegetativo. E em 2015, no princípio de julho, o pintor terminou, estava feito. E neste ano, 2024, por exemplo, ainda nem a meio vamos, do pintor. Por isso vejam!

Mas isso começou a nos preocupar, ligeiramente, porque gostamos de anos com maturação mas não demasiada maturação senão os vinhos podem ficar demasiado maduros, demasiado alcóolicos, com pouca acidez. Começamos a ficar relativamente preocupados, com a maturação em avanço, mesmo que o aspecto da vinha estivesse bem, mas felizmente a natureza foi mesmo nossa amiga. O que é que se sucede? Acabamos por ter um final do mês de julho, e mês de agosto, temperados – não foi excessivamente quente – e até tivemos noites frias, com temperaturas relativamente baixa, o que fez com que a maturação começasse a diminuir de velocidade, e preservar a acidez que é essencial para um tinto como este.

E depois em setembro tivemos o mesmo clima e com algumas chuvas, o que permitiu desacelerar a maturação, mantendo a estrutura e o volume e as características do ano quente, mas ficando com a acidez e aquela frescura que este desacelerar da maturação permitiu fixar na vinha. Permitiu-nos ter, no final, uvas com acidez e ao mesmo tempo com maturação. Por isso é que costumo dizer que este vinho tem características do ‘08 e do ‘11. Tem a acidez e a tensão e a elegância do ‘08, e tem a estrutura, o volume, os taninos e os aromas de fruta madura do 2011.

Por isso fomos buscar o melhor dos dois mundos, do ano frio e do ano quente, e isso reflete-se neste vinho. Quando cheiramos o vinho, tem a maturação, tem os taninos, tem a fruta madura, tem algum cacao, algum chocolate, mas depois na boca, não está demasiado alcóolico, está intenso, tem acidez, tem frescura, tem elegância, tem harmonia, que são características de um ano frio. Conseguimos realmente ter o melhor dos dois anos.

Um cavalo selvagem só pode ser montado depois de ser domado. O Barca Velha é mais ou menos isso.

LNL: Como é que se chega a conclusão que temos um Barca Velha?

LS: É a prova. É a prova que nos diz. Eu vou explicar o processo todo. Nós, todos os anos, tentamos fazer um Barca Velha. Todos os anos tentamos fazer. Nós já sabemos, já temos na Quinta da Leda as parcelas de onde vem as uvas que tradicionalmente são para este tipo de vinho, e temos nas nossas propriedades das zonas altas, as parcelas que tradicionalmente dão origem a este vinho. A partida, o que vai decidir o momento da vindima é a prova do vinho. Logo na vindima, começamos a fazer a mistura das uvas das zonas baixas, com as uvas das zonas altas, para termos logo o equilíbrio e a acidez que pretendemos para este tipo de vinho. Começamos logo aí. Não só isso, mas também misturando variedades diferentes. E nessas vinhas, nessas parcelas, praticamos aquilo que chamamos de viticultura de precisão: só nos interessa a qualidade. Não temos nenhum interesse na quantidade. Inclusive, se achamos que a produção é demasiada, cortamos as uvas que estão à mais, no nosso entender, e vão para o chão.

Uma vez feita a vindima, os vinhos resultantes destas parcelas, normalmente são 14, 15 parcelas diferentes que misturamos, vão pra barrica francesa…a maioria nova. Cerca de 75% nova, e 25% velha. Onde vão estar durante 12 meses. Durante estes 12 meses, nós vamos fazendo diversas provas. Que é o mais importante, provar o vinho, para ver a sua evolução. Se ao fim destes 12 meses entendermos que o vinho tenha a qualidade que nós queremos para este tipo de vinho, fazemos um lote, usamos destas 14, 15 parcelas e escolhemos aqueles que achamos que tenha esta qualidade, este vinho sai das pipas, misturamos-lo todo e voltam para a mesma pipas, onde vai estar mais meia dúzia de meses. Faz um total de cerca de 18 meses em madeira. No fim destes 18 meses, tiramos o vinho, e engarrafamos. E vai para uma garrafa diferente, é uma garrafa borgonhesa.

Como quando o vinho vai para a garrafa ainda não sabemos o que é que vamos declarar, chamamos-lhe de Douro Especial. E vamos provando este vinho, ao longo do tempo. Quanto tempo? Vai depender do próprio vinho. É o vinho que nos vai dizer. Pode ser cinco, pode ser seis, pode ser sete, no caso do 2015, foram sete anos até tomarmos a decisão final se vamos declarar Barca Velha ou Reserva Especial.

E esta decisão final tem de coincidir com outra coisa que é, o momento a partir do qual o vinho começa a estar bebível, e é capaz de ir para o mercado. São vinhos tão intensos, tão densos, que precisam de tempo em garrafa para se suavizarem, digamos assim, para ficarem mais domados. Um cavalo selvagem só pode ser montado depois de ser domado. O Barca Velha é mais ou menos isso. E nessa altura tomamos a decisão também se é Barca Velha ou Reserva Especial. A diferença não está na qualidade, está sobretudo na capacidade do vinho evoluir mais tempo ou menos tempo. Por isso, todos os anos, tentamos fazer, e quando o fazemos, ou vai ser Barca Velha, ou Reserva Especial, ou então não é nada.

Neste momento, os próximos vinhos que declaramos foram o ‘14 e o ‘15; o ‘16, não fizemos. Temos o próximo que será o ‘17 que ainda temos de olhar para o vinho para se decidir o que vai ser, se Barca Velha ou Reserva Especial, mas ainda temos tempo. Acabamos de decidir sobre o ‘15. E o último que engarrafamos foi o ‘22. Neste momento temos em casa a colheita de ‘23, para a qual estamos a olhar, para decidir se vamos engarrafar ou não.

Fotos da autoria de Sebastião Vemba

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